A cena não tinha som e só pela visão despertou a sensibilidade. Era o enterro de um dos soterrados do metrô.
Cena parada: mãe quieta, filha quieta, os dois filhos quietos, envoltos todos no silêncio do derradeiro instante, a despedida.
A mãe dirigiu um monossílabo à filha que acedeu com um gesto de cabeça; a mãe se dirigiu ao filho mais velho, que repetiu o gesto da irmã; a mãe se dirigiu ao filho mais novo; sinal positivo. Então a mãe deu sinal para os coveiros e o caixão baixou
Apesar do momento de dor, a mãe se concentrou nos filhos; não se esqueceu de exaltar a personalidade dos filhos; a mãe pôs em relevo a dignidade de cada um, que decidisse sobre o enterro do próprio pai.
Aquela cena de segundos foi a grande oração de despedida; parecia que cada um repetia o “faça-se”, com um despreendimento que decerto foi bênção da Senhora do Mundo.
Meu Deus, quanto existe de grandeza no coração humano! Aquela família simples fez oposição à morte do chefe e se impôs a ela por um halo de pureza que se elevou da cena e atingiu a sensibilidade de quem a viu.
A águia cria os filhotes nos penhascos; quando estão grandinhos, ela os arremessa no abismo; que se lancem ao vôo.
Ali estava uma águia; os filhos por se desenvolver e, mesmo assim, ela os consultou antes de lançá-los no abismo da orfandade; ela mesma se conteve na antevisão da dor com que vai carpir o tempo nas brenhas da solidão.
Deus os leve a salvo.
Um fato não menos estranho: sinto que coloco a morte em segundo plano para me ater a seu oposto: a valorização da pessoa humana, talvez por intuir sobre o elemento de conciliação e foi o que se viu: nenhum esgarçar-se, nenhum carpir-se naquela cena simples. O relance do momento nos deixou a impressão, se mal comparado, com esses atores do teatro moderno, em que o gesto supera a palavra e a razão se perde no ajustamento da ação. Ali estavam quatro personagens despidas de choro; apenas contidas em si mesmas; apenas uma postura ereta, que o despreendimento também se serve de mestre-de-cerimônias para conduzir seus integrantes à condição de mito.
Mas o teatro moderno não gera mito; a psicologia do teatro moderno é de superfície; não desce aos recônditos da alma para captar, nessas regiões abissais, a força do silêncio de se exprimir na delicadeza da cena que aquela família deixou escapar de suas entranhas machucadas; ela veio com a força de uma mensagem que só pelo coração se faz leitura.
Ali estavam quatro personagens submersas no vazio da ausência e no vazio de si mesmas, sem saber de seu destino, levados pela correnteza do tempo.
Com certeza alcançarão a paz porque, no momento extremo, souberam manter-se distanciados dos esgares de praxe à ocasião. Não. Ali era apenas um só coração que se dirigia a nós, como lição de superar momentos de suprema angústia.
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