segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Conto - 2/3 (Em 20/09/2007)


Sempre imaginei o tempo como uma pessoa: vinha vindo, vinha vindo... Quando chegou, apresentou o recibo do aluguel; eu não tinha como pagar, nunca tive; foi o despejo; nem houve como me despedir dos vizinhos, dos amigos. Vivi algum tempo debaixo da ponte, à espera de mão amiga. Ninguém.

Até que apareceu um policial à procura não sei de quê e me encontrou ali amasiado com a fome e no luxo daquele desamparo; eu começava a criar pelos de bicho; assustou-se. Quando o vi, armei-me de medo; viria decerto em nome do outro cobrar o aluguel; atirei-me à água aos trambolhões e fui levado pela correnteza; passava pelos lugares e o povo se aglomerava às margens do rio: “bendito o que vem em nome do Senhor”. Eu queria dizer que era apenas um afogado, mas a água me invadia pela boca.

O percurso foi longo; muitos dias, semanas; até que as águas me refugaram no outro lado. Assustei-me: o lugar não tinha ligação com o de minha procedência. Não havia com que se alimentar e o ambiente era extremamente rarefeito. Meu Deus, o que fazer aqui?

As pessoas passavam por mim, olhavam com olhares de piedade e se dissolviam na distância num piscar de olhos, como que foragidas do estranho; foi então que o solo sumiu de meus pés; a terra parecia retirar-se e me deixou flutuando à deriva; estranha experiência: por mais que eu gritasse, ninguém me ouvia; aliás, eu não sei se gritava, apesar do esforço; nossas dimensões eram diferentes e constatei uma terrível realidade: eu já não era eu, nem era alguém daquelas pessoas que por mim passavam; eu estava só e sem condições de retorno. Invoquei o tempo; fiz-lhe uma promessa: lutaria por pagar o aluguel; firmei nesse pensamento com tanta força que me vi num vórtice, descendo, descendo em rodopio. Quando entrei de volta, esqueci o que me propus fazer e hoje não sei quem sou, não sei para onde vou; perdi o sentido de mim mesmo.

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