Não entro nos pormenores quanto às práticas, aos rituais, aos procedimentos, às atividades. Esses se modificam com o tempo; a religião não, se veio das raízes profundas do ser humano e passou pela experiência coletiva de diversas gerações antes de se firmar.
O que eu sei sobre o Santo Daime é que é uma religião que veio dos costumes do povo e foi se sedimentando com o tempo, passou a ser norma não escrita entre os adeptos, até que alguém resolveu enquadrá-la num estatuto escrito.
Pense na música; ela nasce na roça, nos gorgotões, entre os aldeões, chega à cidade e ganha forma escrita e alcança os salões. E, mesmo nos salões, não perde o cheiro da terra de onde veio.
Assim se dá com as verdadeiras religiões: elas têm de vir do povo, das crenças não escritas e vão se enraizando na mente coletiva.
Sirvo-me de um documentário que vi há uns 25 anos e de que me emociono ainda.
Um cientista se perdeu numa região remota e foi capturado pelos nativos; viveu com eles quatro anos; alimentavam-se da pesca: os golfinhos empurravam os peixes para a praia e eles pescavam em abundância; certa vez os golfinhos deixaram de vir e o povo passava fome, muita fome; a fome matando a espécie.
E se faziam preces, altares de sacrifício, vidas sacrificadas, encontro entre eles; dois anos depois um avião circulou pela região; eles acenderam uma fogueira; foram vistos; do avião deu-se orientação a uma fragata; o cientista explicou o que acontecia; quis ficar entre os nativos. Sabedores do que ocorria, logo descobriram e orientaram um navio a demover a causa: certo dia, os pajés viram, na linha do horizonte, o sinal dos golfinhos na direção da praia e houve gritos de alegria e houve festa; os pais jogavam os filhos para o alto; outros se atiravam ao solo, ajoelhavam e oravam numa profunda profusão de felicidade.
Perceba Cauê, para esses nativos, os golfinhos eram os deuses que lhes traziam a comida com que manter a tribo; quando o deus faltou, faltou a comida; os golfinhos estavam embutidos na mente desde crianças como deuses do alimento; passaram a ser motivo de veneração de uma coletividade; todos identificados com a mesma verdade.
Perceba ainda que o cientista ficou na mente deles como um anjo de luz, porque só por meio dele foi possível restabelecer a alimentação na comunidade.
O Santo Daime é uma religião nascida das experiências de um povo simples; veja esta expressão: "povo simples" é fundamental porque só os simples estão voltados sobre si mesmos de onde vêm essas inspirações e visões.
As gerações seguintes crescem e sedimentam sua crença nos acontecimentos que os mais velhos lhes contam e os aceitam como verdade porque aquilo lhes desperta faculdades adormecidas. Em suas profundezas, todos se identificam com aquela verdade; daí para a prática é um instante apenas.
Com o tempo, aparece alguém e assume a incumbência de colocar no papel aqueles procedimentos de seu povo; oficializou-se a religião.
O Santo Daime vem dessas origens primitivas.
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