Aconteceu que umas quatro formiguinhas estavam no fundo da colher; eu peguei a colher com as formiguinhas e a coloquei num resto de café, dentro da xícara, na pia. Depois eu mesmo me adverti que aquilo eram vidas, não podiam ser tratadas com desdém. Peguei a xícara e observei que uma das formigas estava parada, boiando, voltada sobre si mesma; era um pontinho perdido num oceano de café; o lance se tornou dramático quando uma outra formiguinha alcançou a aba, no alto da xícara, pelo lado de fora, desceu pela ribanceira de dentro, alcançou as margens do lago, nadou até a outra e as duas formaram um bolinho, uma coisinha só.
Aquilo me emocionou; o que aconteceria? Nada aconteceu. Apenas as duas juntinhas e eu as imaginei abraçadas; pus-me a fazer cogitações: o que a possível ajudante estaria dizendo à outra?
- olhe, eu vim aqui pra morrer com você; nós pertencemos à unidade das formigas; se
temos de morrer, morramos juntas e nossa morte terá mais eco.
Ou ao contrário, a invocação poderia ser positiva:
- olhe, acorde, desperte, nós temos meios de sair daqui; é preciso ter coragem e a
coragem é a arma das formigas. Desperte e vamos juntas para a margem; desperte
enquanto é tempo!
Vidas buscando preservar a vida. Eu não podia deixar que o drama se prolongasse; seria conivente com aquele sofrimento.
Bem de leve, com a ponta da colher, tirei as duas. Aliviadas e despertas, elas se separaram e seguiram rumos diferentes, na pressa de sair daquele mar escuro.
É certo que aquelas formigas, tendo alcançado o limiar da morte e por já viverem em silêncio, alcançaram as profundezas, onde o silêncio é vida e força capaz de trazê-las de volta; como voltaram dessas profundezas, irão formar um novo formigueiro de formigas mais dotadas na grande escala da subida por degraus até à condição humana.
E me ficou o sentido da solidariedade: qual seria o radar, qual seria o sonar que levou à formiga de fora notícia de que a de dentro emitira um SOS? Qual é o regimento que leva uma formiga a se lançar ao desconhecido em socorro de sua irmã? Mistério.
Aquela cena realmente me fez sentir um desejo de participar do segredo; quem sabe eu poderia captar as intenções dos homens que depredam a natureza e se põem a dormir.
Meu Deus! Como pode! Nos limites inferiores da natureza existem correntes que nos escapam! Será que aquelas formiguinhas unidas se revestiram de uma couraça impenetrável à água?
E me vejo forçado a pensar que a mãe natureza mandou a outra em socorro; sabe que uma formiguinha só seria energia de um só pólo; era preciso mais uma e as duas se conciliaram em opostos de lhes trazer a luz, a sabedoria de lhes apontar os meios com que sair.
Penso ainda no homem de um só pólo; será sempre o pássaro de uma só asa, à mercê dos predadores.
De qualquer maneira, aquelas vidinhas penetraram em mim como um chamado e eu tive de atendê-las por obediência: era a vida que, de dentro daquele lago imenso, emitia-me mensagem que eu captei sem saber qual o meio de que disponho para receber ecos de vozes tão pequenas.
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