Há muito tempo sim, venho morrendo. Cada abdicação é um ato de morrer. A abdicação não é morte que aniquile; é morte que vivifica.
Se temos consciência de que em nós, outros valores fazem morada, é preciso que os consideremos no conduzir nosso destino. No convívio desses valores, precisamos abdicar da palavra e dos pensamentos; esses dois abdicares são os requisitos que encontram afinidade com a morte.
Não abdico dos bens porque não os tenho; mesmo se os tivesse, não me teria prendido a eles; não são os bens que nos dissipam; nós é que nos dissipamos pela obsessão com que os preservamos.
Se eu vou precisar fazer uma prova na faculdade, eu preciso estudar, preparar-me; por que não adotar o mesmo critério se a morte é uma prova? De maneira que minha abdicação seja um ato de adaptação ao que está por vir.
Morro todo dia na minha condição de recluso; morro todo dia e a solidão vem me cochichar segredos de outras instâncias, onde a sabedoria é cantora mestra; fico motivado por aderir-me ao coral dos espíritos que souberam afinar-se nos diapasões de outras plagas. Ali a sabedoria dá o tom e as vozes se espalham pelos recantos do sem-fim.
Deixo meu testamento composto de intenções; é só pegar e registrar como de cada um; os herdeiros serão aqueles a quem servirem os bens de meu testamento.
Deixo minha alma entre amigos; ela será testemunha de que não soneguei o saber, já porque nada sabia.
Por fim peço a meus amigos que, se encontrarem algum espólio de mim em seu coração, dividam com outros; que a semente se propague de geração em geração.
Fora disso, é o vazio em que já vivo, celebrando a cada dia a morte de mim mesmo.
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